quarta-feira, 11 de julho de 2007

Sobre o socialismo marxista e suas influências

Escrevi o texto abaixo para ajudar uma amiga de Gustavo. Ela precisava de um resumo das influências de Marx, do socialismo anterior a ele e das diferenças entre o socialismo e o comunismo no marxismo.

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Algumas influências do socialismo marxista

Embora o que se entenda por “socialismo” hoje em dia se refira, em termos amplos, à propriedade coletiva (via Estado ou não) dos “meios de produção”, o que se entendia pela palavra ao longo da história não era exatamente isso. Historicamente, o “socialismo” se referia, basicamente, a uma preocupação com o social. Esta definição pode parecer trivial; no entanto, basta observarmos um pouco a história dos pensadores e movimentos chamados de socialistas para vermos que essa é a única característica que os distinguia.

As teorias socialistas tiveram seu início a partir das teorias liberais clássicas, por mais paradoxal que possa parecer – dada a oposição que hoje pensamos entre as duas tradições, graças principalmente a Karl Marx. Com a crescente liberalização das relações sociais, surgiu uma nova disciplina: a economia política. Com essa disciplina, veio a tentativa de entender as relações sociais na sua totalidade. Havia uma impressão generalizada de que o trabalho, e, por extensão, a divisão do trabalho, traziam uma maior prosperidade para todos.

As teorias liberais clássicas, principalmente aquelas formalizadas por Jean-Baptiste Say, em seu Traité d’economie politique (1803), opunham duas classes de pessoas: os trabalhadores e empreendedores, por um lado, que constituíam a classe produtiva, e os grandes donos de terras e rentiers, privilegiados por conquistas do passado, que não nada produziam. Segundo Say, que colocava sob um mesmo nome tanto a agricultura, a manufatura e o comércio – “indústria” – a primeira classe era a dos “industrieux” – o que deu o nome a um novo movimento na França: o industrialismo.

Benjamin Constant, similarmente, deu nova inspiração aos movimentos de transformação política com seu panfleto anti-napoleônico Le espirit de Conquete (1815), que argumentava que as conquistas de Napoleão não durariam, porque violavam as condições da liberdade individual, a saber, a paz e o comércio.

No fim do período napoleônico, em 1814, dois liberais clássicos, Charles Comte (1782-1837) e Charles Dunoyer (1786-1862), lançaram o jornal Le Censeur europeen, que pretendia avançar os princípios da liberdade individual e do governo representativo. Mais tarde, em 1817, o jornal mudou de foco e passou a enfatizar a própria sociedade industrial, argumentando que, se a indústria não era o objetivo das sociedades modernas, deveria passar a ser. A mudança de rumos do jornal da defesa de algumas liberdades constitucionais para uma defesa da própria sociedade industrial não foi uma mudança trivial; se antes a agenda dizia respeito às instituições representativas, o novo foco tinha relação com a exploração econômica e estruturas de classe. A análise dava ênfase no impacto do sistema econômico sobre o desenvolvimento da cultura política e tentava explicar a passagem de um estágio social a outro.

Segundo eles, a liberdade era o estado que permitia que os homens exercessem suas faculdades e obtivessem o produto de seus trabalhos. O mal era o que interferia na liberdade. Assim, o industrialismo seria o único sistema que permitiria ao homem exercer suas faculdades sem o medo de ser vítima de força, fraude, exploração ou guerra. Como colocou Charles Comte em seu Traité de Legislation (1826): “Em todas as nações uma parte da população domina ou pretende dominar os outros, e é para evitar castigos físicos mais ou menos severos que alguns homens, chamados governados, súditos ou escravos, obedecem ou tentam evitar as ações que se lhes são impostas. A história da espécie humana é composta, numa palavra, de lutas que nasceram do desejo de tomar os prazeres físicos de toda a espécie e impor sobre todos uma dor proporcional.” Assim, a teoria de classes radicalmente liberal nascida na França via no Estado a fonte da exploração e opressão. O mesmo pensamento mais tarde viria a ser importado pelo socialismo marxista.

Na Inglaterra, no começo do século XIX, era o liberal David Ricardo quem tinha o maior prestígio na economia política. Partindo das idéias de Adam Smith, David Ricardo avançou a idéia do valor-trabalho, isto é, a idéia de que a fonte do valor é o trabalho. Alguns autores, porém, tiraram conclusões de certa forma diversas das de David Ricardo, partindo de sua própria estrutura analítica. Um desses grupos foi o dos que ficaram conhecidos como ricardianos socialistas, dos quais o maior foi Thomas Hodgskin (1787-1869).

Hodgskin, embora chamado de “socialista”, defendia coisas que poucos socialistas atuais admitiriam: defendia o livre-comércio, o livre-mercado e a suspensão de todas as regulações. Também era um defensor dos direitos naturais lockeanos, a partir do qual, em conjunção com a teoria do valor-trabalho de Ricardo, ele postulou que havia um total não-pago aos trabalhadores – o que mais tarde viria a ser chamado de “mais-valia” pelos marxistas. Em seu panfleto de 1825, Labor Defended Against the Claims of Capital – intitulado dessa forma para ironizar o título de um panfleto de James Mill chamado Commerce Defended – Hodgskin avaliava que a exploração só era possível através dos privilégios estabelecidos politicamente na seara da produção. O que ele chamava de “capitalismo” não era um regime de livre-mercado, mas de privilégios monopolísticos estabelecidos pelo Estado em benefício de uma plutocracia.

Outros socialismos

Dentro do movimento “industrialista” havia duas facções mutuamente antagônicas que não se perceberam como tal de imediato. Havia a facção liberal e individualista de Charles Comte e Charles Dunoyer, e a facção autoritária e coletivista (apesar dos epítetos, não há nenhum juízo de valor aqui) de Saint-Simon e Auguste Comte.

Os primeiros, como já se mostrou viam uma contradição indissolúvel entre o poder político e a sociedade industrial. Saint-Simon (1760-1825) e Auguste Comte (1798-1857), por outro lado, embora compartilhando o mesmo entusiasmo pela sociedade industrial (e daí a confusão entre as duas tendências “industrialistas”), almejavam uma sociedade onde haveria grandes banqueiros e cientistas no controle do poder político; assim, segundo eles, e usando um slogan que mais tarde viria a ser adotado pelo marxismo, eles queriam substituir o “governos dos homens” pela “administração das coisas”. Ou seja, embora Saint-Simon seja conhecido como “socialista”, o que ele defendia poderia ser caracterizado como uma tecno-plutocracia.

Entre aqueles que são citados como os primeiros socialistas, também deve-se mencionar Robert Owen (1771-1858) e Charles Fourier (1772-1837). Em termos gerais, ambos defendiam a formação de pequenas cooperativas, em que o trabalhador seria recompensado de acordo com seus esforços.

Robert Owen era inicialmente adepto das teorias liberais-utilitaristas de Jeremy Bentham (1748-1832), mas mais tarde, com uma preocupação com as condições sociais da Inglaterra, veio a postular a necessidade da união entre os homens, para que não houvesse mais uma competição entre o trabalho e a máquina, mas uma subordinação desta última. Assim, ele apontava a necessidade da formação de coletivos, de pequenas comunidades cooperativas, em que a produção seria compartilhada. Isso o levou a formar a comunidade de New Harmony nos Estados Unidos, que fracassou.

O fracasso em New Harmony mais tarde levaria Josiah Warren (1798-1874) a asseverar que o problema era a ausência da propriedade privada e da soberania individual, criando assim uma variedade muito peculiar do pensamento: o anarquismo individualista americano. Neste anarquismo, não só há propriedade privada, como também há um livre-mercado; a defesa e a lei são providas por meio de associações voluntárias. A idéia seria aprimorada até o final do século XIX, por pensadores como Stephen Pearl Andrews (1812-1886), William B. Greene (1819-1878), Lysander Spooner (1808-1887) e Benjamin R. Tucker (1854-1939).

Mas voltando um pouco à história convencional do socialismo, temos Pierre-Joseph Proudhon (1809-1865), aquele que primeiro se intitulou anarquista, e que foi influenciado tanto pela facção individualista dos industrialistas quanto pela facção coletivista. A filosofia de Proudhon, embora chamada também de socialista, era cheia de nuances e difícil de caracterizar sob um rótulo só. Em seu livro Qu'est ce que la propriété?, de 1840, que carrega a famosa frase “a propriedade é um roubo”, Proudhon postula que as propriedades existentes eram todas provenientes de privilégios. Ele propõe, então, um novo sistema de propriedade, chamado por ele de possessão, em que não haveria propriedade da terra por donos ausentes; a propriedade estaria intrinsecamente condicionada ao trabalho direto na terra. O mutualismo, sua teoria econômica, propunha um novo sistema de concessão de crédito para sanar a escassez artificial provocada pelos privilégios políticos.

Uma parte das teorias de Proudhon seria desenvolvida nos Estados Unidos, pelos anarquistas individualistas supracitados, que enfatizavam a possessão e o mutualismo. Outra parte de seu pensamento influenciaria o anarco-comunismo de Mikhail Bakunin (1814-1876) e o marxismo.

O socialismo marxista

Eu tentei mostrar algumas das influências óbvias do pensamento de Karl Marx. Evidentemente, o que eu escrevi até aqui não é uma lista compreensiva – mas serve para dar uma noção de que as teorias marxistas não surgiram num vácuo. O liberalismo havia fornecido sua estrutura básica. A economia política de Karl Marx é totalmente baseada na de David Ricardo, influenciada por Thomas Hodgskin e sua teoria da exploração. A formalização das “contradições” de classe que Marx viria a mencionar estavam presentes no trabalho dos liberais Jean-Baptiste Say, Charles Comte e Charles Dunoyer. O pensamento de Proudhon levaria Marx a identificar as “relações de produção”, isto é, à específica estipulação de direitos de propriedade, como um dos fatores que favoreciam o domínio de classes. E os movimentos socialistas anteriores a Marx o levariam a identificar o que ele designaria como “proletariado” como sendo a classe explorada.

Assim, os pilares do pensamento marxista são as seguintes teses: (1) a história da humanidade é a história das lutas de classes – isto é, a luta de uma classe dominante relativamente pequena contra uma classe produtiva relativamente grande, explorada economicamente; (2) a classe dominante é unida por seu interesse em manter seu domínio e maximizar sua apropriação de “mais-valia”; (3) o domínio de classe se manifesta através de arranjos específicos de “relações de produção”, isto é, de certas estipulações de direitos de propriedade; (4) o Estado é a agência de dominação de classe; (5) a classe dominante só pode se manter numa posição exploratória sob uma certa “superestrutura social” – isto é, se houver uma opinião pública favorável; (6) o avanço das “forças produtivas”, isto é, o avanço do domínio exploratório a uma escala cada vez maior (até, eventualmente, uma escala global), faz que hajam sucessivas crises; o domínio exploratório perde sua legitimidade; há um aumento da “consciência de classe”, ou seja, da consciência da classe relativamente mais numerosa de que está sendo explorada, e surgem as “condições objetivas” para uma revolução que acabará com a exploração e estabelerá uma sociedade sem classes.

Segundo Marx, seria o capitalismo laissez-faire que levaria a uma exploração cada vez maior do proletário. Isso ocorreria porque o capitalista apropria-se da “mais-valia” social, isto é, um número de horas de trabalho não-pagas. Ele só seria capaz de fazer isso porque controla o aparato do Estado.

Uma vez que, segundo Marx, o Estado é a própria institucionalização do domínio de classe (é a definição dessa instituição), a revolução proletária deve tomar o aparato estatal. Esse período intermediário, de tomada das estruturas do Estado, foi chamado por Marx de socialismo (embora, como já assinalado, o termo “socialismo” tenha vários significados – sendo inclusive empregado pelos anarco-individualistas americanos para descrever sua filosofia radicalmente anticomunista). Com o controle do Estado, não haveriam mais contradições econômicas sistemáticas e haveria uma absorção da sociedade pelo Estado. Sem contradições econômicas, o Estado não tem razão de existir e, portanto, desapareceria, deixando em seu lugar uma sociedade sem classes – que foi chamada por Marx de comunismo.